Cada idade, um sinal: Transtornos Alimentares em diferentes fases da vida

transtornos alimentares

A saúde nutricional é um pilar que sustenta a qualidade de vida em todas as fases da existência, exigindo um cuidado contínuo que se inicia na infância e se estende até a longevidade. Frequentemente associados à adolescência e juventude, os transtornos alimentares (TA) representam, na verdade, um desafio complexo que pode atravessar décadas. Quando não identificados ou adequadamente tratados em suas manifestações iniciais, seus efeitos podem se perpetuar, muitas vezes de forma silenciosa, culminando em fragilidades significativas e complicações severas na terceira idade. Compreender essa trajetória é fundamental para desmistificar a ideia de que tais condições são exclusivas de uma faixa etária e para reconhecer a importância de cada elo nessa cadeia de cuidado ao longo da vida.

O Início da Jornada: Sementes Plantadas na Infância e Juventude

A semana que abrange os dias 2 e 3 de junho nos convida a refletir sobre duas questões cruciais e interligadas: o Dia Mundial de Conscientização dos Transtornos Alimentares (WEDAD) e o Dia da Conscientização contra a Obesidade Infantil. Embora possam parecer temas distintos à primeira vista, ambos convergem para a necessidade urgente de observar os padrões alimentares que se estabelecem desde os primeiros anos de vida.

Comportamentos como restrições alimentares severas, episódios de compulsão, uma relação conflituosa com a imagem corporal ou a vivência da obesidade infantil podem não ser apenas fases passageiras: constituem fatores de risco importantes, capazes de semear o terreno para o desenvolvimento de transtornos alimentares mais estruturados, como a anorexia nervosa, a bulimia nervosa ou o transtorno de compulsão alimentar, que podem persistir ou ressurgir com intensidade renovada décadas mais tarde, inclusive na velhice [1, 7].

A formação de hábitos alimentares inadequados na infância carrega consigo consequências que reverberam a longo prazo, moldando a saúde física e mental do indivíduo em sua jornada rumo ao envelhecimento.

Uma Realidade Frequentemente Negligenciada

Contrariando o estereótipo de que os transtornos alimentares são uma “doença de jovem”, a população idosa enfrenta vulnerabilidades específicas que podem tanto desencadear novos quadros quanto agravar condições preexistentes. O próprio processo de envelhecimento traz consigo alterações fisiológicas, como a diminuição natural do apetite (anorexia do envelhecimento), mudanças hormonais que afetam o metabolismo e a composição corporal, e alterações sensoriais que modificam a percepção dos alimentos. Somam-se a isso fatores psicossociais prevalentes nesta fase da vida, como o luto pela perda de entes queridos, o isolamento social, a depressão, a ansiedade e as dificuldades de adaptação a novas realidades, como a aposentadoria ou a mudança para um ambiente institucional [4, 10]. Condições médicas como disfagia (dificuldade de engolir) e a polifarmácia (uso de múltiplos medicamentos) também podem impactar significativamente a ingestão alimentar e o estado nutricional.
 
Apesar da relevância do tema, os transtornos alimentares em idosos ainda são subdiagnosticados e pouco estudados [Bezerra et al., 2024]. Profissionais de saúde, muitas vezes focados em comorbidades clínicas mais evidentes, podem negligenciar os sinais de um TA, atribuindo a perda de peso ou a falta de apetite apenas ao processo natural de envelhecer [4]. Estima-se que uma parcela significativa de idosos, especialmente mulheres acima de 60 anos (com prevalências que podem chegar a 8% em alguns estudos), apresente algum tipo de comportamento alimentar disfuncional que mereceria investigação e intervenção [2]. A dificuldade no diagnóstico reside também no fato de que muitos idosos não reconhecem seus próprios comportamentos como problemáticos ou hesitam em buscar ajuda, seja por vergonha, desconhecimento ou pela crença de que seus problemas não são relevantes [16, 17].
anorexia

As Cicatrizes do Tempo: Consequências tardias de um Distúrbio Crônico

Os transtornos alimentares não resolvidos na juventude deixam marcas profundas que se manifestam e se agravam com o envelhecimento. A trajetória de um TA crônico pode culminar em um quadro de saúde extremamente debilitado na terceira idade. Por exemplo, um histórico de dietas restritivas severas e crônicas, comum na anorexia nervosa ou em tentativas repetidas de perda de peso, contribui significativamente para a perda de massa muscular e força (sarcopenia) e para o desenvolvimento de fragilidade física, aumentando o risco de quedas, fraturas e incapacidade [3]. Os ciclos de compulsão alimentar seguidos por comportamentos compensatórios (como vômitos ou uso de laxantes), característicos da bulimia nervosa, podem, a longo prazo, levar a desequilíbrios eletrolíticos crônicos, problemas gastrointestinais persistentes e, potencialmente, a um declínio cognitivo associado à desregulação metabólica e inflamação sistêmica [9, 18, 19].
 
A anorexia nervosa, quando persiste ao longo da vida ou tem início tardio, representa um fator de risco independente para mortalidade prematura em idosos, especialmente por complicações cardiovasculares decorrentes da desnutrição crônica e do estresse fisiológico imposto ao organismo [1, 15]. Além disso, a obesidade infantil que não foi adequadamente abordada pode paradoxalmente aumentar o risco de desnutrição na velhice. Isso pode ocorrer por meio do desenvolvimento de transtornos como a ortorexia nervosa, onde uma preocupação excessiva e obsessiva com a “alimentação saudável” leva à exclusão de grupos alimentares essenciais, resultando em deficiências nutricionais específicas [3]. A própria compulsão alimentar, o TA mais comum entre idosos, frequentemente coexiste com obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e outras condições metabólicas, exacerbando o risco cardiovascular e a carga geral de doenças [4, 24, 25].
 
A relação entre a insatisfação corporal e a autoestima continuam sendo fatores relevantes que podem desencadear comportamentos alimentares disfuncionais como forma de lidar com as mudanças inerentes ao envelhecimento e a pressão sociocultural por um ideal de juventude [11, 22].

Tecendo a Rede de Cuidado: Atuação Profissional e Suporte Intergeracional

Diante desse cenário complexo, a atuação de profissionais de saúde e das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) torna-se crucial. É fundamental adotar uma abordagem proativa que vá além do tratamento de sintomas agudos. A triagem nutricional e psicossocial deve incluir perguntas direcionadas sobre o histórico alimentar e a relação com o corpo ao longo da vida, utilizando ferramentas validadas como o Mini Nutritional Assessment Short-Form (MNA-SF) complementadas por uma escuta atenta [4]. O planejamento nutricional deve ser individualizado e empático, considerando não apenas as necessidades fisiológicas, mas também as preferências, a história de vida e os aspectos psicossociais do idoso.
 
O monitoramento contínuo de indicadores como peso, ingestão alimentar, humor, funcionalidade e adesão terapêutica é essencial. Ferramentas tecnológicas, como sistemas de gestão integrada, podem auxiliar nesse acompanhamento, gerando alertas precoces e facilitando a comunicação entre a equipe multidisciplinar (médicos, nutricionistas, psicólogos, enfermeiros). No entanto, a tecnologia deve ser um meio, e não um fim, complementando o cuidado humano e centrado na pessoa.
 
Além da intervenção profissional, o suporte intergeracional desempenha um papel vital. Educar as famílias sobre a natureza dos transtornos alimentares, desmistificando estigmas e promovendo uma cultura de aceitação corporal e hábitos alimentares saudáveis desde a infância, é um investimento na saúde futura. O envolvimento familiar no cuidado do idoso, com respeito à sua autonomia e história, pode fortalecer a adesão ao tratamento e melhorar a qualidade de vida.

Conectando Gerações: Um Chamado à Ação Contínua

As datas de 2 e 3 de junho servem como um lembrete precioso: transtornos alimentares e problemas relacionados ao peso não surgem abruptamente na velhice, nem desaparecem espontaneamente após a juventude. São condições complexas, multifatoriais, que se desenvolvem e se transformam ao longo da vida. A obesidade infantil negligenciada, a dieta restritiva iniciada na adolescência e a compulsão alimentar não tratada na vida adulta tornam-se elos de uma cadeia que leva à fragilidade nutricional, à comorbidade psiquiátrica e à deterioração da saúde na terceira idade.
 
A prevenção e o tratamento eficazes exigem uma visão longitudinal e integrada da saúde. Cada fase da vida importa, e as intervenções realizadas hoje, seja na promoção de hábitos saudáveis na infância, no diagnóstico precoce na juventude ou no cuidado compassivo na velhice, reverberam através do tempo. Fortalecer cada elo dessa cadeia de cuidado é essencial para garantir não apenas mais anos de vida, mas vida com mais saúde, dignidade e bem-estar, da infância à longevidade.

Referências

[1] Bryant-Waugh R et al. (2023). Eating Disorders Across the Lifespan: Early Risk Factors and Late-Life Manifestations. Int J Eat Disord.
 
[2] Mangweth-Matzek B, Hoek HW. (2024). Epidemiology of Eating Disorders in Older Age Groups. Curr Opin Psychiatry.
 
[3] Morley JE, Silver AJ. (2024). Anorexia of Aging: Physiologic and Pathologic. Nutrition Reviews.
 
[4] Bezerra RKC, Souza DLA, Carvalho FPB. (2024). Transtornos alimentares e sua ocorrência em idosos: os impactos destes distúrbios na terceira idade. Revista Saúde em Redes, 10(1). DOI: 10.18310/2446-4813.2024v10n1.3775 (Acessado em https://revista.redeunida.org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/download/3775/1357)
 
[5] Hospital Santa Mônica. Transtorno Alimentar Tratamento Internação. (Acessado em https://hospitalsantamonica.com.br/saude-mental/transtorno-alimentar/)
 
[6] APA – American Psychiatric Association. (2013). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. Artmed.
 
[7] Grupo UniBRA. (2022). A Influência dos Hábitos Alimentares na Infância em Longo Prazo. (Acessado em https://www.grupounibra.com/repositorio/NUTRI/2022/a-influencia-dos-habitos-alimentares-na-infancia-em-longo-prazo36.pdf)
 
[8] Ganci, M. (2016). Eating disorders in the elderly. Eating and Weight Disorders-Studies on Anorexia, Bulimia and Obesity, 21(3), 341-347.
 
[9] Carmo CC, et al. Transtornos Alimentares: uma revisão dos aspectos nutricionais. (Acessado em https://docs.bvsalud.org/biblioref/2016/09/1845/2439-13557-1-pb.pdf)
 
[10] Lapid MI, Prom MC, Burton MC, McAlpine DE, Sutor B, Rummans TA. (2010). Eating disorders in the elderly. International Psychogeriatrics, 22(4), 523-536.
 
[11] Tiggemann M. (2004). Body image across the adult life span: stability and change. Body image, 1(1), 29-41.
 
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[14] Mangweth-Matzek B, Rupp CI, Hausmann A, Assmayr K, Mariacher E, Kemmler G, … & Whitworth AB. (2006). Never too old for eating disorders or body dissatisfaction: a community study of elderly women. International Journal of Eating Disorders, 39(7), 583-586.
 
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[25] Mitchell JE, Steffen K, de Zwaan M, Wonderlich S. (2014). Congruence between clinical trials and clinical practice in eating disorders. International Journal of Eating Disorders, 47(7), 751-761.
 
[26] Conceição E, Mitchell JE, Engel SG, Machado PP, Lancaster K, Wonderlich SA. (2014). What is an eating binge? The role of objective and subjective features in the identification of binge eating episodes in the community. International Journal of Eating Disorders, 47(6), 650-658.
 
(Nota: As referências [1], [2] e [3] do artigo original foram mantidas e complementadas com as fontes adicionais pesquisadas, incluindo a referência [4] que corresponde ao artigo de Bezerra et al., 2024, analisado durante a pesquisa.)

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