Polifarmácia em Idosos: Navegando os Riscos com Cuidado, Conhecimento e Tecnologia
O envelhecimento é uma jornada marcada por vivências e aprendizados, mas que também traz o desafio de lidar com múltiplas condições de saúde. Nesse contexto, os medicamentos desempenham um papel central: auxiliam no controle de doenças crônicas, aliviam sintomas e contribuem para a melhoria da qualidade de vida. No entanto, quando o número de fármacos utilizados aumenta, entramos em um campo que exige atenção especial — a polifarmácia.
Mais do que uma questão quantitativa, a polifarmácia envolve a complexidade de gerenciar diferentes medicamentos de forma segura e eficaz. A administração inadequada pode gerar interações medicamentosas, eventos adversos e comprometer a adesão ao tratamento, impactando negativamente a saúde da pessoa idosa. Por isso, compreender os riscos associados e adotar estratégias de monitoramento são passos fundamentais para garantir que os medicamentos cumpram seu papel terapêutico sem comprometer o bem-estar.
Este artigo aborda os principais aspectos da polifarmácia, seus riscos potenciais e as ferramentas disponíveis — como protocolos clínicos, revisão periódica da prescrição e suporte tecnológico — que podem transformar o cuidado em um processo mais seguro, centrado na pessoa e orientado à promoção da qualidade de vida.
O Que Realmente Significa Polifarmácia?
É comum associarmos o termo polifarmácia ao uso de muitos medicamentos — geralmente, cinco ou mais. Embora essa definição quantitativa seja útil como ponto de partida, ela não capta a verdadeira complexidade do tema. A polifarmácia que mais preocupa profissionais e cuidadores é a inapropriada: aquela em que há prescrição de medicamentos desnecessários, ineficazes, com sobreposição terapêutica ou que, em vez de beneficiar, representam riscos para a saúde da pessoa idosa.
Com o avançar da idade, torna-se frequente o diagnóstico de múltiplas condições crônicas — como hipertensão, diabetes, osteoartrite, entre outras — cada uma exigindo tratamentos específicos, muitas vezes prescritos por profissionais diferentes. Quando não há uma visão integrada do cuidado, a prescrição pode se fragmentar. Sem uma revisão criteriosa da real necessidade, eficácia e segurança de cada medicamento, o risco de complicações cresce de forma expressiva.
Os efeitos adversos da polifarmácia inapropriada são amplos e impactam diretamente a autonomia e a qualidade de vida. Interações medicamentosas — em que um fármaco interfere na ação de outro — podem reduzir a eficácia do tratamento ou provocar reações inesperadas. Algumas combinações aumentam significativamente o risco de quedas, um evento com alto potencial de gravidade para pessoas idosas. Outras substâncias afetam negativamente a cognição, gerando confusão mental, sonolência excessiva ou declínio da memória.
Além disso, a complexidade envolvida no uso de múltiplos medicamentos pode comprometer a adesão ao tratamento: o paciente pode esquecer doses, tomar em horários inadequados ou até abandonar o regime terapêutico diante da dificuldade de compreensão e organização. Os chamados eventos adversos a medicamentos — ou iatrogenias medicamentosas — estão entre as causas mais frequentes de internações hospitalares e atendimentos de urgência, com custos elevados para o sistema de saúde e, acima de tudo, sofrimento para o paciente e sua família.
Exemplos não faltam: o uso prolongado de benzodiazepínicos, por exemplo, pode favorecer quedas e dependência química; anti-inflamatórios de uso comum, se administrados sem o devido acompanhamento, podem causar danos ao trato gastrointestinal ou à função renal. Identificar esses riscos e atuar preventivamente é parte essencial de um cuidado responsável, centrado na pessoa idosa e orientado à sua segurança.
Ferramentas Estruturadas na Gestão Medicamentosa: Tecnologia a Favor da Segurança no Cuidado à Pessoa Idosa
Felizmente, a prática geriátrica contemporânea dispõe de ferramentas robustas, fundamentadas em evidências, para promover uma gestão medicamentosa mais segura, racional e centrada na pessoa idosa. Entre as mais consolidadas estão os Critérios de Beers, elaborados pela Sociedade Americana de Geriatria. Essa ferramenta lista medicamentos potencialmente inapropriados para pessoas idosas, seja por seu risco elevado de efeitos adversos, seja por sua pouca eficácia frente a alternativas mais seguras, especialmente em contextos clínicos específicos.
Complementando essa abordagem, os critérios STOPP/START (Screening Tool of Older People’s Prescriptions / Screening Tool to Alert doctors to Right Treatment) oferecem uma visão ainda mais abrangente. O componente STOPP identifica situações de prescrição potencialmente inadequada — como o uso de medicamentos com alto risco, duplicidade terapêutica, doses excessivas ou uso prolongado sem reavaliação. Já o componente START destaca omissões terapêuticas, ou seja, casos em que um medicamento clinicamente indicado e potencialmente benéfico deixou de ser prescrito, comprometendo o cuidado integral.
No entanto, a segurança medicamentosa não se limita à aplicação pontual desses critérios. Trata-se de um processo contínuo, proativo e colaborativo. Um dos pilares dessa abordagem é a reconciliação medicamentosa, especialmente relevante em momentos de transição no cuidado — como internações, altas hospitalares ou mudanças de domicílio. Essa prática consiste em revisar, comparar e alinhar a lista de medicamentos que a pessoa realmente utiliza com as novas prescrições, identificando e corrigindo omissões, duplicidades ou inconsistências.
Outra estratégia essencial é a desprescrição. Em muitos casos, um medicamento que foi indicado no passado pode deixar de ser necessário ou passar a representar mais riscos do que benefícios, à medida que o quadro clínico do idoso evolui. A desprescrição é um processo estruturado, supervisionado e compartilhado com a pessoa idosa e sua rede de apoio, visando ajustar, reduzir ou suspender medicamentos de forma segura e individualizada.
Essas estratégias — quando integradas — compõem o alicerce de uma gestão medicamentosa centrada na pessoa, orientada à promoção da eficácia terapêutica, à prevenção de danos e à preservação da autonomia. Mais do que reduzir números na lista de remédios, o foco é garantir que cada fármaco tenha um propósito claro, esteja alinhado com os objetivos de cuidado e contribua, de fato, para a qualidade de vida.

Como a tecnologia da Gero360 potencializa esse processo?
A gestão medicamentosa de pessoas idosas é um processo intrinsecamente complexo — e essa complexidade se intensifica em contextos como Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) ou no cuidado domiciliar compartilhado entre múltiplos cuidadores. Nesses cenários, não basta o conhecimento clínico: é indispensável contar com organização, comunicação clara entre os envolvidos e acesso ágil a informações integradas e confiáveis. É nesse ponto que a tecnologia, como a desenvolvida pela Gero360, assume um papel estratégico e transformador.
Uma plataforma de gestão integrada permite que equipes assistenciais registrem, acessem e atualizem, em tempo real, não apenas a prescrição medicamentosa, mas também informações clínicas, funcionais, histórico de intercorrências, resultados de exames e a evolução global da pessoa idosa. Essa consolidação de dados favorece o raciocínio clínico compartilhado e embasa decisões mais seguras.
Com esse suporte digital, a aplicação de ferramentas como os critérios STOPP/START e Beers torna-se significativamente mais efetiva. As equipes têm maior visibilidade sobre possíveis riscos associados a determinados medicamentos, conseguem identificar padrões de uso prolongado ou omissões terapêuticas, e podem planejar intervenções com base em evidências e no histórico individual de cada pessoa atendida.
O mesmo princípio se aplica ao cuidado domiciliar, ampliado por soluções como o aplicativo Leve by Gero. Por meio da plataforma, familiares, cuidadores e profissionais acompanham em tempo real os registros de saúde da pessoa idosa — com alertas sobre alterações clínicas, adesão ao tratamento, intercorrências e evolução de indicadores de bem-estar. Essa continuidade de informações promove um diálogo mais qualificado entre todos os envolvidos no cuidado, fortalece a corresponsabilidade e aprimora as decisões clínicas, sempre com foco na segurança, na autonomia e na qualidade de vida.
O Elo Essencial: O Papel Ativo do Paciente e do Cuidador
Por mais avançada que seja, a tecnologia deve ser compreendida como uma aliada — não como substituta — da relação humana no cuidado. A gestão medicamentosa segura e eficaz exige mais do que sistemas integrados: depende do engajamento ativo da pessoa idosa e de seus cuidadores. No cuidado centrado na pessoa, o paciente deixa de ser um receptor passivo de prescrições para assumir o papel de protagonista de sua própria saúde.
É essencial que os profissionais de saúde dediquem tempo para explicar, de forma clara e acessível, a finalidade de cada medicamento, o modo correto de administração, os possíveis efeitos colaterais e como agir diante deles. Estimular perguntas, acolher dúvidas e ouvir com atenção as preocupações da pessoa idosa e de sua rede de apoio fortalece o vínculo terapêutico e promove maior adesão ao tratamento.
O conceito de decisão compartilhada é central nesse processo. Ele pressupõe a apresentação transparente das opções terapêuticas, a análise conjunta dos riscos e benefícios e a consideração dos valores, prioridades e rotina de vida da pessoa atendida. Muitas vezes, o que é clinicamente indicado pode não se encaixar na realidade ou nas preferências daquele indivíduo — e reconhecer isso é parte do cuidado ético e personalizado.
Também é fundamental valorizar e incluir os cuidadores — sejam familiares, amigos próximos ou profissionais — como parte ativa da equipe de cuidado. São eles que, no cotidiano, administram os medicamentos, observam reações, percebem mudanças e, não raro, são os primeiros a identificar sinais de alerta. Capacitar esses cuidadores com informação de qualidade, garantir canais abertos de comunicação com os profissionais de saúde e envolvê-los nas decisões terapêuticas não apenas fortalece a segurança medicamentosa, mas também reduz a sobrecarga emocional e operacional que frequentemente recai sobre eles.
Um exemplo simples ilustra bem essa lógica: quando o cuidador compreende que determinado diurético deve ser administrado pela manhã — para evitar idas frequentes ao banheiro à noite e, com isso, diminuir o risco de quedas — ele tende a aderir com mais convicção ao plano terapêutico, sabendo que há um propósito claro por trás de cada orientação.
Conclusão: Dados, tecnologia e segurança no envelhecimento
A polifarmácia é uma realidade frequente no cuidado à pessoa idosa — mas seus riscos não precisam ser encarados como inevitáveis. Quando compreendemos que a gestão medicamentosa segura vai muito além da contagem de comprimidos, e passa pela avaliação contínua da necessidade, da adequação e da efetividade de cada prescrição, damos um passo essencial rumo a um cuidado mais qualificado e centrado na pessoa.
Ferramentas validadas, como os critérios de Beers e STOPP/START, associadas a estratégias como a reconciliação medicamentosa e a desprescrição, fornecem o embasamento técnico necessário para decisões clínicas mais seguras e individualizadas.
O uso dessas ferramentas estruturadas, combinado com soluções tecnológicas como as da Gero360, fortalece uma prática assistencial ética, moderna e colaborativa — tanto em ILPIs quanto no ambiente domiciliar. Ao integrar conhecimento técnico, tecnologia de apoio e, sobretudo, um olhar empático para a trajetória de cada pessoa idosa, conseguimos transformar a polifarmácia de um risco silencioso em uma oportunidade de cuidado mais inteligente e seguro.
Cuidado baseado em dados é cuidado com mais segurança, mais precisão e menos riscos.
Porque envelhecer com qualidade começa quando o cuidado deixa de ser apenas reativo — e se torna planejado, preventivo e orientado por informação confiável.
Leia também o primeiro post da série: Intoxicação por medicamentos em pessoas idosas
Referências
American Geriatrics Society Beers Criteria® Update Expert Panel. American Geriatrics Society 2023 updated AGS Beers Criteria® for potentially inappropriate medication use in older adults. J Am Geriatr Soc. 2023;71(7):2052-2081. doi: 10.1111/jgs.18372. Disponível em: Link
O’Mahony D, O’Sullivan D, Byrne S, O’Connor MN, Ryan C, Gallagher P. STOPP/ START criteria for potentially inappropriate prescribing in older people: version 2. Age Ageing. 2015;44(2):213-218. doi:10.1093/ageing/afu145. Disponível em: Link
Organização Mundial da Saúde. Medication Safety in Polypharmacy. Genebra: OMS; 2019. Disponível em: Link