A Experiência Cinematográfica do Envelhecer
Nem sempre é na lógica do cotidiano que enxergamos as nuances do envelhecer. Às vezes, é no encontro com a Arte, em sua poderosa capacidade de contar histórias, moldar percepções e evocar emoções, que acessamos as camadas mais profundas da experiência humana.
As narrativas fílmicas, quando abordam o tema da longevidade, permitem-nos adentrar universos subjetivos, confrontar estereótipos sobre o envelhecimento, explorar as nuances das condições de saúde que marcam essa fase da vida e testemunhar a resiliência do espírito humano diante do tempo. Performances audiovisuais, longa metragens, curtas e documentários são produções que nos conduzem a um olhar mais delicado sobre o tempo que nos atravessa e as escolhas que nos moldam ao longo da jornada. O Cinema, em sua essência, provoca reflexões, resgata memórias e abre caminhos para conversas que muitas vezes adiamos.
Mais do que apenas retratar a velhice, o cinema atua como um catalisador para o diálogo intergeracional, um recurso para a educação em saúde e até mesmo um instrumento terapêutico, auxiliando na elaboração de processos pessoais e coletivos relacionados à memória e à finitude. A forma como o envelhecimento, a doença (como o Alzheimer) e as relações familiares são representadas na tela influencia nossa própria percepção e atitude perante esses temas.
Neste artigo, propomos um mergulho em como o cinema aborda a longevidade, analisando não apenas o conteúdo de obras específicas, mas também refletindo sobre o potencial da arte cinematográfica para enriquecer nossa compreensão sobre o viver e o envelhecer com saúde, dignidade e significado, apoiados por insights da cultura, da gerontologia e dos estudos fílmicos
Desconstruindo Estereótipos: “Envelhescência” (2015) e a celebração da vida madura
O documentário brasileiro “Envelhescência” (2015), dirigido por Gabriel Martinez, oferece um contraponto vibrante às visões frequentemente limitadoras da velhice.
Ao acompanhar as histórias reais de seis idosos, o filme desafia a ideia do envelhecimento como um período de declínio e passividade, retratando-o, ao contrário, como uma fase de redescoberta, liberdade e autenticidade.
As narrativas apresentadas ecoam conceitos fundamentais do envelhecimento ativo e da gerontologia positiva, que enfatizam o potencial contínuo de desenvolvimento, participação social e bem-estar na vida adulta tardia.
O filme não ignora os desafios, mas seu foco reside na capacidade de adaptação, na busca por novos projetos e na manutenção de um senso de propósito. Ao dar voz a essas experiências diversas, “Envelhescência” convida o espectador a questionar seus próprios preconceitos sobre a idade (ageismo) e a reconhecer a heterogeneidade do processo de envelhecer, mostrando que a vitalidade e o movimento podem, sim, ser atributos da longevidade.
Arte, Memória e Alzheimer: a humanidade que persiste em “I Remember Better When I Paint” (2009)
O documentário “I Remember Better When I Paint” (2009), narrado por Olivia de Havilland, mergulha na complexa relação entre a arte, a memória e a doença de Alzheimer. Através de relatos emocionantes e evidências científicas, o filme explora como atividades artísticas, em particular a pintura, podem reativar a comunicação, estimular a cognição e melhorar a qualidade de vida de pessoas vivendo com demência.
Mais do que um relato clínico sobre os benefícios da arteterapia – um campo crescente que utiliza processos criativos para promover saúde mental e bem-estar –, o filme é um poderoso lembrete sobre a humanidade que permanece intacta mesmo diante das perdas impostas pela doença. Ele nos mostra que, embora a memória verbal possa falhar, outras formas de expressão e conexão, mediadas pela arte, podem florescer.
A obra dialoga com estudos sobre neuroplasticidade e a importância de abordagens não farmacológicas no cuidado à demência, ressaltando como o engajamento em atividades significativas pode resgatar a identidade e a dignidade da pessoa, oferecendo um vislumbre da pessoa por trás da doença.
Corpo, Tempo e Poesia Visual: A Dança da Memória em “Em Três Atos” (2015)
“Em Três Atos” (2015), dirigido por Lúcia Murat, tece uma delicada tapeçaria visual e narrativa sobre o envelhecimento, a memória e a passagem do tempo, tendo como fio condutor o encontro entre duas bailarinas em fases distintas da vida e os textos da filósofa Simone de Beauvoir, uma pensadora seminal sobre a condição da velhice.
O filme utiliza a linguagem da dança – o corpo em movimento, sua expressividade, suas marcas – como metáfora para explorar a relação entre corpo, identidade e memória ao longo da vida. A justaposição da juventude e da velhice no palco da dança convida a uma reflexão sobre a continuidade e a transformação do ser, desafiando a visão linear do tempo.
Ao incorporar a filosofia de Beauvoir, que em “A Velhice” analisou criticamente a construção social da idade e a marginalização dos idosos, o filme transcende a mera poesia visual, tornando-se um ensaio sobre a experiência subjetiva do envelhecer, a persistência da memória corporal e a busca por significado em todas as fases da existência. A obra nos lembra que o corpo é, ele mesmo, um arquivo vivo de nossas histórias.
Conclusão: O Cinema como Ferramenta de Empatia e Transformação Social
Os exemplos de “Envelhescência”, “I Remember Better When I Paint” e “Em Três Atos” ilustram o vasto potencial do cinema para abordar as complexidades da saúde, da memória e da longevidade de maneira sensível, profunda e transformadora. Ao nos colocar em contato com narrativas que desafiam estereótipos, exploram a subjetividade da experiência e celebram a resiliência humana, a sétima arte funciona como um poderoso instrumento de empatia.
Filmes sobre o envelhecimento podem educar, sensibilizar e inspirar, fomentando diálogos necessários sobre o cuidado, a dignidade, a inclusão e o combate ao ageísmo em nossa sociedade. Utilizar o cinema como recurso em contextos educativos, terapêuticos ou de discussão comunitária pode ampliar nossa compreensão sobre o processo de envelhecer e fortalecer nosso compromisso com uma longevidade mais humana e significativa para todos.
Convidamos você a prosseguir nesta jornada de autoconhecimento e conhecer outros artigos da Gero360 relacionados ao tema da memória e da longevidade:
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Referências:
Sobre Cinema, Representação e Gerontologia Cultural:
Debert, G. G. & Simões, J. A. (2006). Imagens cinematográficas da velhice: um enfoque gerontológico. Kairós Gerontologia, 9(2), 15-33. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/kairos/article/download/2591/1645
Almeida, T. V. C. & Giacomin, K. C. (2013). Cinema e percepção do envelhecimento. Extensio: Revista Eletrônica de Extensão, 10(15), 101-111. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/extensio/article/download/1807-0221.2013v10n15p101/25454/0
Beauvoir, S. de. (1990). A Velhice. Nova Fronteira. (Obra seminal citada no contexto do filme “Em Três Atos”, fundamental para a crítica cultural do envelhecimento).
Neri, A. L. (Org.). (2007). Qualidade de vida e idade madura. Papirus Editora. (Contextualiza o envelhecimento ativo e positivo abordado em “Envelhescência”).
Sobre Arteterapia, Memória e Demência:
Camargo, C. H. P., et al. (2017). Contribuições da arteterapia para promoção da saúde e qualidade de vida de idosos: revisão integrativa. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, 20(4), 590-602. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgg/a/Fbw5zpHsjmnDvqybHT4ZWSk/
Cohen, G. D. (2006). Research on creativity and aging: The positive impact of the arts on health and well-being. Generations, 30(1), 7-15. (Referência internacional sobre o impacto positivo das artes na saúde de idosos). Disponível em: Research on Creativity and Aging on JSTOR
Filme Documentário:
I Remember Better When I Paint (2009). Dirigido por Eric Ellena e Berna Huebner.
Filmes Citados:
Envelhescência (2015). Direção: Gabriel Martinez.
Em Três Atos (2015). Direção: Lúcia Murat