A autonomia, um dos pilares da dignidade humana, ganha destaque nas discussões sobre o cuidado da pessoa idosa, especialmente no contexto das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Mais do que um sinônimo de independência funcional, a autonomia envolve a capacidade da pessoa de tomar decisões sobre sua própria vida, orientada por suas vontades, valores e preferências, mesmo diante de limitações físicas ou cognitivas que possam surgir com o envelhecimento. Esse princípio não é apenas um direito humano fundamental, mas um alicerce ético que deve nortear todas as práticas de cuidado, transformando a experiência do envelhecer em uma trajetória de respeito, escuta e valorização do indivíduo.
A discussão sobre a autonomia da pessoa idosa em ILPIs ganha destaque com o lançamento da Cartilha de Fiscalização das Instituições de Longa Permanência para Pessoas Idosas, promovido pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no qual especialistas comprometidos com a longevidade ativa afirmam que o respeito à autonomia no ambiente institucionalizado se traduz, primordialmente, em uma escuta ativa por parte das equipes multidisciplinares e de seus gestores. A adaptação de rotinas e a compreensão de que cada residente possui uma história de vida única, com valores e preferências individuais, são exemplos práticos de como pequenos gestos, quando incorporados à rotina, podem ressignificar profundamente a experiência de cuidados da pessoa idosa.
Com base em diretrizes nacionais e publicações como o ebook “A efetividade do direito à autonomia da pessoa idosa na Instituição de Longa Permanência”, a Gero360, neste artigo, convida você a pensar o cuidado da pessoa idosa como uma vivência de afetos e protagonismo.
A Evolução do Reconhecimento dos Direitos da Pessoa Idosa e o Conceito de Autonomia
O crescente percentual da população com mais de 60 anos tem impulsionado uma maior discussão sobre os direitos inerentes ao envelhecimento, com foco especial na autonomia, capacidade, assistência social e saúde. A trajetória do reconhecimento desses direitos, tanto em âmbito nacional quanto internacional, revela um avanço significativo, embora ainda haja desafios a serem superados. Até a década de 1970, a legislação brasileira sobre o tema era incipiente, limitando-se, em grande parte, a normas previdenciárias, sem um arcabouço jurídico específico para as particularidades do envelhecimento.
No cenário internacional, um marco importante foi a I Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada em Viena, em 1982, que resultou no primeiro Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento. Posteriormente, em 1991, a ONU adotou os “Princípios das Nações Unidas para Pessoas Idosas”, que desdobraram os direitos da população idosa em eixos como independência, participação, assistência, realização pessoal e dignidade. O enunciado número 14 desses princípios é particularmente relevante para o contexto das ILPIs, ao afirmar que “Os idosos devem ter a possibilidade de gozar os direitos humanos e liberdades fundamentais quando residam em qualquer lar ou instituição de assistência ou tratamento, incluindo a garantia do pleno respeito da sua dignidade, convicções, necessidades e privacidade e do direito de tomar decisões acerca do seu cuidado e da qualidade das suas vidas”.
A II Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, em Madri, em 2002, gerou um plano de ação mais robusto, visando atualizar as propostas e adequá-las aos desafios do século XXI, com o objetivo de garantir que a população possa envelhecer com segurança e dignidade, e que os idosos continuem a participar plenamente da sociedade. Em consonância com esses princípios internacionais, o Brasil promulgou o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), um marco legal que sistematizou os direitos fundamentais da pessoa idosa, abrangendo áreas como saúde, assistência social, transporte e, crucialmente, as instituições de longa permanência. A Constituição Federal de 1988 já havia estabelecido o dever do Estado, da sociedade e da família de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, dignidade, bem-estar e o direito à vida.
O conceito de autonomia, nesse contexto, transcende a mera capacidade física ou mental. Ele se refere à habilidade do indivíduo de autodeterminar-se, de fazer escolhas que reflitam seus valores, crenças e preferências. Em ILPIs, o desafio é compatibilizar esses dois aspectos. O comprometimento cognitivo, por exemplo, pode dificultar a expressão da autonomia, tornando a ação de terceiros essencial para garantir que as vontades do idoso sejam respeitadas. É nesse ponto que o cuidado centrado na pessoa se torna indispensável, reconhecendo a individualidade de cada residente e promovendo um ambiente onde suas escolhas, por menores que sejam, sejam valorizadas e facilitadas. A Gero360, alinhada a essa visão, presente, inclusive, em inúmeras ILPIs de todo o Brasil, acredita que o cuidado institucional pode e deve ser um espaço de escuta ativa, protagonismo e respeito, onde a autonomia da pessoa idosa seja não apenas um direito reconhecido, mas uma realidade vivida diariamente.

O Cuidado Centrado na Pessoa e a Importância do Profissional de Referência
O modelo de cuidado centrado na pessoa emerge como uma abordagem essencial para a efetivação da autonomia em ambientes de longa permanência. Este modelo reconhece a pessoa idosa como um ser único, com uma história de vida, valores, preferências e necessidades individuais que devem ser o ponto de partida para a elaboração de qualquer plano de cuidado. Longe de uma visão assistencialista que tende a padronizar e, por vezes, infantilizar o idoso, o cuidado centrado na pessoa busca promover o protagonismo do residente, incentivando-o a participar ativamente das decisões que afetam sua vida diária. Isso significa ir além da simples provisão de necessidades básicas, englobando a escuta ativa de suas vontades, a valorização de suas escolhas e a adaptação das rotinas institucionais para que se alinhem, sempre que possível, aos seus desejos e hábitos. Pequenos gestos, como permitir que o idoso escolha suas roupas, decida sobre a participação em atividades ou opine sobre seu tratamento, são expressões concretas desse cuidado respeitoso e promotor de autonomia.
Nesse contexto, a figura do profissional de referência assume um papel crucial. Este profissional atua como um elo fundamental entre o idoso, sua família e a equipe multidisciplinar da ILPI. Sua função vai além da execução de tarefas, envolvendo a construção de um vínculo de confiança e aprofundado conhecimento sobre a individualidade de cada residente. É o profissional de referência quem, por meio de uma observação atenta e de uma comunicação empática, consegue identificar as preferências, os medos, os desejos e as necessidades não expressas verbalmente pelo idoso, especialmente aqueles com comprometimentos cognitivos. Ao centralizar as informações e coordenar as ações da equipe, o profissional de referência garante que o plano de cuidado seja verdadeiramente individualizado e que as decisões tomadas reflitam, ao máximo, a vontade do idoso, mesmo que essa vontade precise ser interpretada e mediada. Essa abordagem colaborativa e personalizada é vital para evitar práticas que, embora bem-intencionadas, acabam por suprimir a autonomia e enfraquecer a autoestima da pessoa idosa, transformando o cuidado de um “fazer por ela” para um “fazer com ela”.
Desafios e Propostas para um Novo Modelo de Atuação
A implementação plena do direito à autonomia em ILPIs enfrenta desafios significativos, especialmente em relação a grupos de idosos comprometidos por transtornos neurocognitivos. Tal condição de saúde muitas vezes leva à adoção de protocolos que priorizam a segurança da pessoa idosa, em um equilíbrio de cuidados que oscila entre o bem-estar e o desejo do residente.
Para superar esses desafios, profissionais de saúde e gestores de ILPIs vem desenvolvendo modelos de atuação focados na capacitação contínua de suas equipes e na revisão de suas práticas, buscando a melhoria da qualidade do serviço e a promoção de uma cultura institucional que valoriza a individualidade e o protagonismo do idoso. Além disso, a criação de protocolos de fiscalização mais específicos, como os propostos pelo Ministério Público, oferece subsídios técnicos para assegurar que a autonomia seja efetivamente possível no dia a dia do cuidado institucionalizado. A colaboração entre as instituições, o poder público e a sociedade civil é essencial para disseminar as melhores práticas e construir um futuro onde o envelhecimento seja sempre sinônimo de dignidade, respeito e autonomia.
Conclusão
O direito à autonomia da pessoa idosa é um tema complexo e multifacetado, que exige de nós empatia, compromisso e compreensão. Ao reconhecer a pessoa idosa como um sujeito de direitos, capaz de fazer escolhas e de participar ativamente de sua própria vida, as ILPIs atuam como espaços exemplares de acolhimento, onde a longevidade e o envelhecimento são vividos com plenitude e respeito. Ao promover essa discussão e alinhar-se com as melhores práticas de cuidado, a Gero360 reafirma seu compromisso com a longevidade ativa e a construção de um futuro onde a autonomia da pessoa idosa seja uma realidade incontestável.
Referências:
ALMEIDA, L. C. C. O Direito à Autonomia e à Manutenção de Vínculos Comunitários da Pessoa Idosa com Déficit Cognitivo nas Instituições de Longa Permanência de Campos dos Goytacazes. Campos dos Goytacazes, RJ: Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, 2022.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, 2002. Disponível em: Link. Acesso em: 11 jun. 2025.
Princípios das Nações Unidas para Pessoas Idosas. Disponível em: Link. Acesso em: 11 jun. 2025.